21 agosto 2004

Ary dos Santos

José Carlos Ary dos Santos, nasceu em Lisboa em 1937.
Aos quatorze anos, a sua família publicou-lhe alguns poemas, considerados maus pelo poeta.
No entanto, Ary dos Santos revelaria verdadeiramente as suas qualidades poéticas em 1954, com dezasseis anos. É nessa altura que vê os seus poemas serem seleccionados para a Antologia do Prémio Almeida Garrett.
Em 1963 dar-se -ia a sua estreia efectiva com a publicação do livro de poemas "A Liturgia do Sangue". Em 1969, ano que o próprio Ary dos Santos considerava ter marcado decisivamente a sua vida, iniciou-se nas actividades políticas, integrando a campanha da CDE e filiando-se mais tarde, no Partido Comunista Português, participando de forma activa nas sessões de poesia do então intitulado "Canto Livre Perseguido". Foi principalmente através da sua poesia que contribuiu para a política nacional, numa altura em que a livre expressão havia sido anulada pela ditadura salazarista e em que urgia gritar pela liberdade, embora esse grito fosse, na maior parte das vezes, calado pelo regime.
Entretanto, concorreu, sob pseudónimo, ao Festival da Canção da RTP com os poemas "Desfolhada" e "Tourada", obtendo os primeiros prémios. É aliás através deste campo - da música - que o poeta melhor se tornaria conhecido entre o grande público. O poema "Desfolhada", cantado por Simone de Oliveira, com música de Nuno Nazareth Fernandes, ganhou em 1969, o primeiro lugar do Concurso da Canção RTP. Também em 1972, o primeiro lugar pertenceu a Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes com "Menina", interpretado por Tonicha. Um ano mais tarde a vitória seria de Ary dos Santos novamente, mas desta vez em parceria com Fernando Tordo, com "Tourada", interpretado por Fernando Tordo. Além destes êxitos, também o poema "Meu Amor, Meu Amor", escrito em 1968, com música de Alain Oulman e interpretação de Amália Rodrigues, obteve em 1971 o Grande Prémio da Canção Discográfica.
Autor de mais de seiscentos poemas para canções para os mais variados artistas entre os quais se contam Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Fernando Tordo, José Afonso, Paulo de Carvalho e Simone de Oliveira, entre muitos outros, Ary dos Santos fez no meio muitos amigos. Gravou, ele próprio, textos ou poemas de e com muitos outros autores e intérpretes e ainda um duplo álbum contendo "O Sermão de Santo António aos Peixes" do Padre António Vieira.
À data da sua morte tinha em preparação um livro de poemas intitulado "As Palavras das Cantigas", onde era seu propósito reunir os melhores poemas dos últimos quinze anos, e um outro intitulado "Estrada da Luz - Rua da Saudade", que pretendia fosse uma autobiografia romanceada.
Ary dos Santos faleceu em 1984.
Em 1984, logo após a sua morte, foi lançada a obra "VIII Sonetos de Ary dos Santos" de Manuel Gusmão no decorrer de uma sessão na Sociedade Portuguesa de Autores, da qual o autor era membro.
Ary dos Santos foi um dos mais talentosos poetas da sua geração, conhecido pela sua linguagem irreverente e ágil e que contribuiu para a viragem da música popular portuguesa. Como ele próprio dizia, a poesia era a maneira que ele tinha de falar com o povo porque ser poeta é escolher as palavras que o povo merece.

Bibliografia: 1953 - "Asas"; 1963 - "A Liturgia do Sangue"; 1964 - "Tempo da Lenda das Amendoeiras"; 1965 - "Adereços, Endereços"; 1968 - "Insofrimento In Sofrimento"; 1970 - "Fotosgrafias"; "Ary por Si Próprio"; 1973 -
"Resumo"; 1974 - "Poesia Política"; 1975 - "Llanto para Afonso Sastre y Todos"; "As Portas que Abril Abriu"; 1977 - "Bandeira Comunista"; 1979 -
"Ary por Ary"; "O Sangue das Palavras"; 1980 - "Ary 80"; 1983 - "Vinte Anos de Poesia"; 1984 - "As Palavras das Cantigas"; "Estrada da Luz - Rua da Saudade"

Teatro: "Azul Existe" (1964); "Os Macacões" (em colaboração com Augusto Sobral); "O Caso da Mãozinha Misteriosa" (em colaboração com Augusto Sobral).


“QUANDO UM HOMEM QUISER”

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


"POETA CASTRADO, NÃO!"

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
Cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
Teorema corolário
poema de mão em mão
Lãzudo publicitário
Malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
Ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
– é tão vulgar que nos cansa –
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
– a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
– Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
– Ah! não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

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