12 agosto 2004

Espaço à poesia

Sei que estamos em tempo de férias, de lazer, de nada fazer, apenas relaxar corpo e mente.
Mas nunca é demais o saber…nunca é demais a leitura de um bom livro, de literatura com qualidade, independentemente do estilo ou gosto de cada um.
E porque estou de férias e com tempo para pesquisar…porque não abrir aqui e agora um pequeno espaço para dar a conhecer um pouco da nossa poesia e dos nossos poetas?
Claro que o gosto, a escolha é pessoal e intransferível…mas vale a pena correr o risco de espreitar, ler e quem sabe aprender a gostar deste género literário.
Começo por José Régio…como poderia começar por outro poeta qualquer, mas o seu “Cântico Negro” é simplesmente (na minha perspectiva) belíssimo.
Um pouco da biografia do poeta para entrada e depois este belíssimo poema.
Deliciem-se…alimentem a alma, que mesmo em férias precisa de algo que lhe dê forças e energias.

José Maria dos Reis Pereira Régio nasceu em Vila do Conde, em 1901.Publicou os seus primeiros versos nos jornais "O Democrático" e "A República".
Licenciou-se em Filologia Romântica com uma tese sobre "As Correntes e as Individualidades da Moderna Poesia Portuguesa", que não foi muito apreciada por valorizar Mário de Sá -Carneiro e Fernando Pessoa, quase desconhecidos na época. Esta tese, refundida, foi mais tarde publicada, em 1941, com o título "História da Moderna Poesia Portuguesa".
Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista “Presença”, que se publicou durante 13 anos e que iniciou o segundo Modernismo português de que José Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Para além da sua colaboração assídua nesta revista, deixou também textos dispersos por publicações como a “Seara Nova”, ”Ler”, o ”Comercio do Porto” e o “Diário de Notícias”.
Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao
ensaio. Como ensaista, dedicou-se ao estudo de autores como Camões, Raul Brandão e Florbela Espanca.
.Obras de destaque: "Jogo da Cabra-Cega", 1934; "As Encruzilhadas de Deus”1936; "Jacob e o Anjo e Três Máscaras", 1940; "Fado", 1941; "O Príncipe com Orelhas de Burro", 1942; "Mas Deus é Grande", 1945; "Benilde e a Virgem -Mãe", 1947; "A Chaga do Lado", 1954; "Há Mais Mundos", 1962 (livro de contos pelo qual recebeu o Grande Prémio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores); "Cântico Suspenso", 1968; "Música Ligeira e "Colheita da Tarde" (livros de poesia publicados postumamente).
Recebeu em 1961, o prémio Diário de Notícias e, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética.
Faleceu em 1969.




Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

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